Tipos de cura pro animal selvagem que é o meu corpo.
Um olhar sensível (demais) sobre desejos, instintos e liberdade.
‘‘Estar disposta a me entender como um bicho que respira e não um projeto.’’
Escrevi essa frase no meu diário e resolvi trazer pra cá também, já que essa semana andei pensando muito sobre a ideia de pegar mais leve. Comigo, com os outros, com a vida.
Faz pouco tempo que percebi que talvez eu nunca vá me sentir totalmente completa. E tudo bem. Talvez meu jeito de existir seja esse mesmo: como um quebra cabeças com peças faltando. Uma construção contínua, sem pressa de chegar. Peculiar, divergente.
Entendi que é uma resposta a um medo de não me tornar um projeto bem sucedido, não ser suficiente. Uma ausência do ‘’estar pronta’’, que não precisa ser uma falha, pois pode muito bem virar um lembrete carinhoso de que meu valor não mora no encaixe perfeito. E sim no processo de procura por tudo aquilo que preenche meus vazios.
Essa mania de me pensar como um esboço que precisa dar certo de primeira só alimenta uma ilusão de que tenho que me tornar alguém diferente de quem eu sou. A verdade é que eu sou já essa pessoa que eu quero ser, só preciso me lembrar melhor disso.
Além do que, não são minhas faltas que me afastam de mim. Pelo contrário, são elas que me aproximam da minha versão mais humana possível. Um ser vivo, um corpo que respira.
E, de vez em quando, relembrar isso já é o suficiente pra poder seguir em paz.
Um Instinto Animal
Esses dias, me vi escrevendo sobre estar me sentindo tão conectada com a minha vida real, de uma forma que talvez eu nunca estive antes. Como se finalmente me sentisse a capitã do meu próprio barco.
Sou uma das folhas que caem das árvores quando o vento bate. Sou uma das gotas de água que derretem no rosto quente do sol quando alguém pula no rio.
E, como se o universo tivesse lido essas minhas palavras, no dia seguinte a vida me entregou um poema. Simples, direto e bonito de um jeito que me desmontou na hora.
‘’Gansos Selvagens’’, da Mary Oliver.
Você não tem que ser boa.
Você não tem que caminhar milhares de quilômetros
de joelhos no deserto arrependida.
Você só tem que deixar o animal macio que é o seu corpo
amar aquilo que ama.
Me fala do desespero, do seu, que eu te conto do meu.
Enquanto isso, o mundo gira.
Enquanto isso o sol e os seixos límpidos da chuva
se movem pelas paisagens
sobre as pradarias e as matas fechadas,
as montanhas e os rios.
Enquanto isso os gansos selvagens, nas alturas do azul do céu,
tomam outra vez o caminho de casa.
Seja lá quem for você, não importa sua solidão,
o mundo se oferece à sua imaginação,
te convoca como os gansos selvagens, áspero e empolgante
de novo e de novo anunciando o seu lugar
na família de todas as coisas.
Aceitação, liberdade, pertencimento, instinto. Foi como se Mary Oliver estivesse falando diretamente comigo. Em um momento onde tudo o que eu precisava era lembrar que o mundo continua, a natureza segue o seu próprio curso.
E, independente da minha dor ou solidão, sempre vai existir um lugar pra mim no todo. Como os gansos selvagens, que sempre encontram o caminho de volta pra casa, eu também pertenço a algo maior e carrego a capacidade de voltar pra mim sempre que quiser.
Uma mensagem de reconexão com a vida e com a disposição animalesca que vive dentro de mim. Pra aceitar, cada vez mais, meu caráter selvagem.
Autobiografia Portátil
Desde que comecei a me dar o aval pra me encher de penduricalhos, decorar meu próprio corpo e personalizar meu personagem, tenho me visto ainda mais eu.
As tatuagens que escolhi marcar na pele, as cores das minhas unhas e também os acessórios que carrego comigo pra lá e pra cá. Tudo isso conta um pouquinho de mim de formas que me encantam.
Faz um tempo que comecei a buscar acessórios que não fossem só bonitos, mas que dissessem algo sobre a pele que neles encosta. Bonito por bonito, quase tudo parece ser.
Inventei um jeito meu: comprei um cordão de prata simples e decidi garimpar, com toda calma do mundo, pingentes em brechós e feirinhas por onde eu passava. Um por um, fui juntando símbolos pequenos, achados no acaso, peças que diziam algo (mesmo que nem sempre eu soubesse exatamente o quê).
No fim, nasceu um colar só meu. Um amontoado de coisas soltas que, juntas, fazem total sentido. Nada ali veio pronto, nada veio montado.
Cada parte tem uma origem, uma história e um porquê que é só meu e de mais ninguém. Agora, eu carrego no pescoço pequenas narrativas em forma de metal. Uma espécie de autobiografia portátil que tem muito mais a entregar do que quem olha pode ver.
Eu amo esses mistérios que eu guardo comigo mesma. Colocar meus motivos todos bem ali, na fuça do mundo, e mesmo assim ninguém poder descobrir os segredos que só eu poderia contar. Bom demais brincar assim.
E, mais uma vez, fui atrás de fazer algo não só por necessidade, mas por diversão. Até porque, não ter o que a gente quer na hora que a gente quer é sempre uma oportunidade de criar.
Lembrando que criar, mesmo que em miniatura, é um jeito de contar pra mim mesma que a minha história vale ser carregada por aí do meu jeito.
Meu Próprio Kintsugi
Dia desses, caí numa playlist de theta waves. E, desde então, ando obcecada.
Pra quem não conhece, as ondas theta são frequências cerebrais que a gente acessa naquela linha tênue entre o acordado e o dormindo. Um quase sono, meio sonho, meio realidade.
É um estado de relaxamento profundo, onde o cérebro desacelera completamente. Bem como quando a gente chega em casa e consegue finalmente tirar o sutiã e abrir o botão da calça.
A playlist que tenho escutado tem sons com frequências entre 4 e 8 Hz, o que embala a mente em direção a esse lugar de calmaria suspensa. E, mesmo que eu esteja escrevendo ou desenhando ou fazendo qualquer outra coisa, a oportunidade de relaxar a cabeça enquanto meu foco permanece só naquilo é encantadora pra mim.
Nessa nova pequena obsessão, fui atrás de mais informações e descobri o theta healing. Uma técnica que usa dessas vibrações como ponte pra o que chamam de ‘curas emocionais’.
Achei interessante o uso pra aliviar a ansiedade, aprofundar estados meditativos, acessar memórias antigas (em casos de tratamentos terapêuticos) e até preparar o corpo pra um sono de mais qualidade, onde se fica mais tempo na fase REM (ou Movimento Rápido dos Olhos).
Dizer que a música cura nunca foi tão verdade por aqui. E seguir em busca de pequenos atos de carinho comigo mesma só me mostra o quanto ainda posso fazer por mim.
Quando abraço a ideia de que a realidade pode sussurrar mais baixo e que a leveza é possível numa rotina real, volto a lembrar que não levar tudo tão a sério, tão a seco e tão sem sal é um caminho sem volta pra restauração de mim. Meu próprio kintsugi.
Faroeste Feminino
Das coisas que consumi nos últimos tempos e que, de alguma forma, curaram algo aqui dentro de mim como mulher: Marlina a Assassina em Quatro Atos. Recomendo com vontade.
Um filme indonésio, de 2017. Assisti por acaso, dentro de uma igreja numa noite de quinta-feira fria aqui em Amsterdam. Fazia parte de um projeto de cinema internacional que acontecia pela cidade e a gente foi de última hora, sem nem saber do que se tratava o filme.
Logo nos primeiros instantes, senti um estalo, uma conexão direta com um dos filmes que mais assisti na minha adolescência. Lembrei na hora de Kill Bill.
Uma mistura de faroeste, drama e feminismo que me pegou de jeito e eu não conseguia tirar os olhos da tela. Por mais lento e espaçado que o filme fosse.
Acompanhamos Marlina, uma viúva que vive isolada nas paisagens áridas da Indonésia. Ela é atacada por um grupo de homens enquanto cuida sozinha da casa – e, de algum lugar dentro dela, Marlina puxa uma força crua, quase mítica, pra se defender. A partir daí, tudo se desdobra: assassinato, roubo, jornada, confissão, nascimento.
O filme joga na nossa cara, sem cerimônia alguma (dando bastante ênfase aqui no ‘’sem cerimônia’’), temas que ainda gritam em pleno 2025: a violência contra a mulher, a busca por justiça numa sociedade patriarcal, o corpo como território e os silêncios femininos como pedidos de socorro. E o mais lindo de tudo, é que o filme subverte o faroeste, que é um gênero tão masculino, e coloca uma mulher no centro da ação – não como vítima, mas como heroína vingadora.
Só isso já teria me valido a sessão. Mas ali, naquela noite improvável e sentada ao lado da minha prima que resolveu dormir nos primeiros 5 minutos de trailer, tudo o que eu pensava era que aquilo era mais do que cinema. Foi um caminho sem volta pra dentro de uma força feminina que, às vezes, a gente esquece que têm e que deve exercer.
Pequenos Pactos Silenciosos
De vez em quando, tudo o que eu preciso é me levar pra passear. Ir num lugar que me chama, vestir uma roupa que me olha de volta através do espelho me dizendo que eu tô linda e fazer algo que só faça sentido pra mim e mais ninguém.
Me deixar ser abstrata e intangível por alguns instantes. Observar o mundo de longe, enquanto eu me aproximo de mim. E é exatamente isso o que eu tenho feito.
Sempre que posso, junto tudo o que não me pode faltar dentro de uma bolsa quase maior do que eu (o que inclui uma garrafa de água, frutas, cadernos, giz pastel e minha caneta japonesa favorita) e lá vou eu. Caminho sozinha em silêncio até um dos meus cantos preferidos da cidade, deito na grama, coloco meus fones e deixo o tempo me escapar pelas mãos sem medo.
Esticar meu corpo, deixar os pensamentos vagarem soltos por aí como se eu estivesse sonhando e sem controle do que eu mesma vou fazer, e me perguntar sem o intuito de responder com urgência: quem sou eu quando não existe platéia?
Um mimo que eu me dou em meio a rotina, um pequeno pacto silencioso: ser eu, comigo mesma.
Bônus Track
#1: Um lembrete escrito e desenhado por mim, pro Precisa Que Desenhe. E um bom motivo pra tu ir lá seguir esse meu projeto – tem posts novos todos os dias.
#2: A última edição do projeto ‘Queria Falar’ lá no meu canal do YouTube pra tu assistir – sai um novo toda Segunda-feira (e um vlog toda Quarta-feira).
Abraço De Despedida
Obrigada por ler até o fim e por estar aqui comigo.
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Nos vemos semana que vem? Espero que sim.
Que lindeza de texto! Amei muito, obrigada
Nati, quantos textos maravilhosos 🥹🥹 sua escrita da muito prazer de ler, e eu estou amando o viés feminino e super pessoal que você traz nas suas reflexões. Este poema que você compartilhou bateu muito com algumas questões minhas, obrigada por trazer esta pérola, não conhecia ♥️ parabéns pela newsletter, realmente você tem muito talento para a escrita e sua autenticidade é muito notável ✨✨