A leveza descompromissada de se deixar ser quem se é.
Entre delírios, confetes, expressão, o punk rock e a liberdade de não dar certo.
‘‘Ser minha própria cúmplice é o melhor que eu posso me oferecer.’’
Demorei quase trinta anos pra escrever essa frase num pedaço de papel qualquer. E, consequentemente, pra entender o que ela realmente queria me dizer.
Me permitir ser o problema e também a solução. Ser minha água e meu fogo. O bom e o mau exemplo. Admirar meu paradoxo pessoal.
Há dias venho ruminando todas as mudanças que me atravessaram sem meu consentimento, mas que, no final das contas, foram incrivelmente necessárias pra me trazer até aqui. Uma troca de rumo, um burnout, um diagnóstico.
As transformações mais radicais, pelo menos, foram todas autorizadas por mim. A primeira delas? Me deixar gostar do que eu gosto, ser quem eu sou. Não só no espelho, mas no mundo.
Não baixar meu volume, não diminuir minha saturação, não esmagar meu sentir. Não passar mais outros trinta tentando caber num molde que nunca me vestiu bem.
Já não quero ser nada além disso aqui. Entendi que toda vez que digo ‘’sim’’ pra mim, me apaixono mais pela vida.
Não Perder Minha Muiteza
Em um do meus dias ferozes de TPM – quando as únicas coisas que acalmam o sangue que me escorre sem parar, as dores apertadas e o dengo exacerbado são comidas confortáveis, meus cachorros e a segurança de reassistir filmes que desliguem meu cérebro – eu resolvi relaxar.
Pra surpresa de nenhum de nós, a última coisa que fiz foi desligar o botão das profundas reflexões. De novo, fui assistir Alice no País das Maravilhas (provavelmente pela vigésima quinta vez) e fiquei presa.
Dessa vez, agarrada a uma cena em específico. E ela não saiu da minha cabeça a semana inteira.
O Chapeleiro Maluco diz pra Alice:
‘‘Você era muito mais muitaz. Você perdeu a sua muiteza.’’
É tanta inocência na fala dele, mesmo carregando uma verdade tão crua. Alice perdeu parte daquilo que a fazia única, do que a mantinha mais viva – a essência, a loucura. Uma loucura que antes fez o Chapeleiro abrir o coração e também sussurrar ‘’Você é maluca, mas vou te contar um segredo: as melhores pessoas são’’.
Tive muito medo quando percebi que eu também tinha perdido a minha muiteza. Meu delírio, minha esquisitice. E foi esse pavor que me conduziu por uma nova via, sem atalho e simplesmente sem fim.
Na busca por inspiração, fui atrás daqueles que não têm vergonha nenhuma de ser quem são. E aí encontrei uma frase de um cara que, também paradoxalmente, sabia bem como ser um bon vivant, mas que escolheu partir cedo demais.
Anthony Bourdain (me) disse:
‘’Eu não quero ser adequado. Prefiro falhar gloriosamente fazendo algo estranho, incrível, mas fundamentalmente um fracasso.’’
Na hora que li, pensei ‘’nossa, ainda bem que eu entendi isso a tempo’’. Mesmo não sabendo ao certo a tempo de quê ou o que exatamente eu entendi.
Só sei que fez sentido pra mim e pra minha maluquice. E, hoje em dia, isso já me é mais do que suficiente.
Abraçando Meu Caos
Como pode um filme curar a adolescente esquisita que mora em mim?
Assistir Dinner in America não só me grudou no sofá, mas, de um jeito meio inesperado, abraçou uma parte antiga minha. Minha adolescente solitária, que sempre se sentiu estranha no meio do mundo, foi acolhida.
É uma comédia dramática, barulhenta, caótica e com um humor ácido que eu adoro. A gente acompanha a história do Simon e da Patty, cruzando um caminho de imperfeições, rejeições e, acima de tudo, muita autenticidade. Uma autenticidade que eu só fui aprender e aceitar bem depois de adulta.
A vida toda, senti que não me encaixava em lugar nenhum, por mais que me esforçasse muito. Não tinha grupo que me fizesse sentir confortável o suficiente pra ser eu mesma, não tinha amizade que fizesse isso por mim. Ser diferente sempre foi um peso e me fazia solitária demais.
Depois de mais ou menos vinte e cinco anos, entendi que grande parte dessa minha singularidade se dava ao fato de eu ser neurodivergente. Autista, pra ser mais exata. E foi com essa descoberta que veio a autorização mais libertadora que eu já me dei: a de viver exatamente do meu jeito.
Esse filme me lembrou muito disso. Da coragem que Simon e Patty têm em ser quem eles são – caóticos, imperfeitos, intensos e completamente malucos. E o quanto isso é revolucionário.
Me lembrei que ser esquisita não é (e nem nunca foi) uma falha, e sim uma forma de vida brilhante. Um grito do meu eu adolescente, que finalmente teve forças pra se permitir ligar o foda-se pro resto do mundo.
Dinner in America é um manifesto punk pra quem nunca se adequou, pra quem viveu o isolamento de se sentir diferente (muitas vezes sem nem entender o porquê), pra quem achou que tinha que se esconder pra sobreviver. E, pra mim, foi um abraço que acolheu o meu caos da melhor forma possível: me chamando pra dançar.
Fazer Um Carnaval De Mim
‘‘Envelhecer é um processo extraordinário no qual você se torna a pessoa que sempre deveria ter sido.’’
Quem disse essa frase foi uma das minhas pessoas favoritas: David Bowie. Meu herói da autenticidade.
Desafiar padrões, reinventar a si sem pedir licença, provocar quem precisar ser provocado. Aprendi tudo isso com ele – cantando Heroes enquanto pulava no sofá da sala da minha mãe (que antes era vermelho, depois virou marrom e eu não aceito até hoje essa mudança totalmente irrelevante).
É curioso e também paradoxal ter Bowie tão presente desde pequena e, mesmo assim, ter demorado tanto pra me dar permissão de validar as minhas próprias estranhezas. Mas foi ele quem me mostrou que era possível criar universos onde eu poderia ser inteira, louca e celebrada. Felizmente, conforme fui envelhecendo, um dia esse ensinamento fez sentido e eu finalmente comecei a praticar.
Um eterno inovador, um camaleão cultural. Ele não era só música, era um refúgio pra quando eu não sabia o que fazer com as minhas diferenças, minhas esquisitices, minhas contradições. David Bowie é um caminho genial pra leveza descompromissada de se deixar ser quem se é. E admito que, ultimamente, tenho sentido mais a falta dele por aqui.
Em algum ano que não me lembro qual, fui vestida dele pro carnaval: tonalizei o cabelo, pintei o raio vermelho no rosto e vesti uma roupa que brilhava até não poder mais. Lembro de cantar baixinho pra mim mesma ‘‘we can be us, just for one day’’ – aceitando a liberdade crua de ser, sem máscaras e sem desculpas.
Uma memória que virou um pequeno lembrete pra, sempre que der, fazer de mim e da vida um grande carnaval. Onde tudo pode e tudo é festa, zero expectativas, zero julgamentos. Ser por ser, se divertir por se divertir.
E, como nem todos os dias podem ser bons dias e nem todas as escolhas vão ser as melhores, também saber deixar a poeira baixar de vez em quando. Respirar fundo e ressurgir, quente, das minhas próprias cinzas.
Me Cercar De Espelhos
Uma das minhas pequenas atuais obsessões tem a ver com uma frase que eu li sei lá onde. Provavelmente em algum TikTok aleatório, enquanto rolava a tela com a cabeça em outro lugar:
‘‘Personalize tudo ou morra sem nada em seu nome.’’
Desde então, ela tem ecoado em mim. Talvez porque aqui em casa o DIY (faça você mesmo) já seja um costume.
Eu e Arthur carregamos um orgulho quase que ingênuo cada vez que alguém elogia algo feito por nós. Um quadro torto, uma estante improvisada, um detalhe que só existe porque foi imaginado pelas nossas mãos.
E essa vontade de personalizar tudo também veio através de uma promessa que me fiz a não muito tempo atrás: me cercar de espelhos. Transformar absolutamente tudo ao meu redor numa extensão da minha expressão. Adaptar o mundo até que ele comece, pouco a pouco, a se parecer mais comigo em cada canto.
Ando especificamente apaixonada por customizar minha jaqueta jeans (que devo usar dia sim, dia não) e minha ecobag de estimação. Comprei um montão de safety pins de todos os tamanhos e comecei uma curadoria pessoal de pingentes aleatórios pra ir prendendo no tecido. Mais uma vez, como quem borda pedacinhos da própria identidade – também falei disso na edição passada da news, vou deixar o link aqui pra quem ainda não leu.
É um processo lento de procurar, testar, errar, prender, tirar e fazer tudo de novo. Mas talvez seja por isso mesmo que me faça tão bem. Mais um hobby pro meu colecionismo, será?
E quando vejo minha brincadeira existindo ali no mundo real, se conectando comigo e mostrando um pouco de quem eu sou, fica melhor ainda. Minto, fica incrível. Me sinto criança outra vez, querendo pular de alegria, fazer barulhinhos de felicidade.
Porque eu sou assim mesmo: um pingente de um cachorro fazendo cocô cravejado de strass azul, outro que se lê ‘‘amore’’ escrito em metal barato, um raio do Bowie e até uma jóia que era da minha vó.
Símbolos, afetos, sutilezas. Uma mistura complexa e humana de coisas que os outros até podem gostar ou querer ou vestir ou ter, mas nunca do meu jeito.
Melhorar Na Frente Dos Outros
Ultimamente, meu papo comigo mesma tem sido esse: me deixar melhorar enquanto os outros olham e não me importar com esses olhares. E ainda bem.
Começar algo que me faz bem, sem precisar ser imediatamente boa naquilo, fazer e dar errado. Mostrar que tô tentando, mesmo que não dê em nada. Ou que vire outra coisa no meio do caminho.
Foi assim que, num mesmo mês (aparentemente tomada por um surto criativo ou pura insanidade), iniciei três novos projetos do zero. Não sou expert em nenhum deles, não me acho brilhante na maioria e, pra ser bem sincera, nem tô tentando ser.
O Precisa Que Desenhe nasceu como um espaço meu pra desenhar feio e escrever profundo. Não ia contar pra ninguém, era só meu. Mas algo me puxou pelo braço dizendo que não tem nada de errado em ser vista tentando. Então, deixei escapar pro mundo.
É impressionante o que a gente recebe em troca quando tem coragem de expor nossas vulnerabilidades assim, no cru. As conexões ficam bem mais verdadeiras e importantes. Com os outros, comigo, com o processo.
Depois, veio o Queria Falar. Um outro lugar que tirei do papel com o intuito de abrir o peito e conversar com mais intimidade sobre os assuntos que permeiam a minha vida – rotina, amizades adultas, o ato de saber pedir, e por aí vai.
Não sou especialista em nada disso. Não sou comunicadora profissional, terapeuta ou guru da internet. Só sou eu, falando o que eu sinto e como eu penso. E isso tem me preenchido de um jeito tão doce quanto um dos meus momentos favoritos do dia: livro e chá, na cama, esperando o sono bater.
E, como se não bastasse, inventei de começar essa newsletter aqui. Depois de mais de uma década trabalhando escrevendo pros outros – pra marcas, empresas, agências – eu finalmente voltei a escrever por e pra mim. Olha a loucura.
Colocar tudo isso lado a lado, uma palavra depois da outra, é com certeza algo que faço agora sorrindo aqui do outro lado da tela. Simplesmente porque, pela primeira vez em muito tempo, decidi me deixar ser nada além de mim em tudo o que tenho me proposto.
Não é mais sobre ser incrível, pronta, impecável. É sobre ser honesta comigo mesma, tentar, aprender, fazer do meu jeito e melhorar (mesmo que devagar) aos meus próprios olhos.
Recomendo.
Bônus Track
#1: Um lembrete escrito e desenhado por mim, pro Precisa Que Desenhe. E um bom motivo pra tu ir lá seguir esse meu projeto – tem posts novos todos os dias.
#2: A última edição do projeto ‘Queria Falar’ lá no meu canal do YouTube pra tu assistir – sai um novo toda Segunda-feira (e um vlog toda Quarta-feira).
Abraço De Despedida
Obrigada por ler até o fim e por estar aqui comigo.
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Nos vemos semana que vem? Espero que sim.
Texto perfeito! Eu sempre fui “a esquisita” tbm, e hoje em dia abracei total minha esquisitice. Pra mim hoje esquisito é quem eh normal HAHAH. Obrigada pelas reflexões e por validar esse sentimento que a gente precisa ser unapologetically a gente mesma.
Alice no País das Maravilhas é perfeitoooo!!! Cheio de simbolismo com o chamado principal da vida: nos tornarmos nós mesmos.