Transformar minha fúria em algo sagrado.
Formas de acolher em mim o que me ensinaram a esconder e fazer alguma coisa que preste com isso.
‘‘A raiva tem me salvo a vida. Sem ela o que seria de mim?
Há dias que vivo de raiva de viver. Porque a raiva me envivece toda: nunca me senti tão alerta.’’
– Clarice Lispector.
Há semanas eu venho pensando e escrevendo sobre me esquivar de sentir raiva. Fui tão bem treinada a ser silenciosa, pacífica, serena, adequada, a não deixar subir à superfície toda a violência que carrego. Hoje em dia, talvez já nem saiba mais como fazer o contrário bem feito.
Um pânico de perder o controle, de ser igual aos meus maus exemplos, de não me enxergar mais depois disso, de ser ruim. De dar pano pra manga pra quem sempre me tachou como rebelde, reativa, respondona – como se isso fosse uma coisa maligna.
Pode mesmo ser uma das minhas maiores lutas da vida adulta: me deixar sentir raiva. Nem eu mesma acredito quando leio o que falei. Logo eu, que sempre tive sede de justiça, que não engulo sapo no seco e nem deixo minhas palavras guardadas pra criar mofo.
A minha sorte é que eu sou decidida. E já decidi que ser rebelde, reativa e respondona também podem ser das minhas características favoritas. Principalmente como mulher.
Li o que Clarice disse e pensei em transformar minha fúria em algo sagrado.
Filhas Perfeitas, Mulheres Furiosas
Ser a filha perfeita requer muitas máscaras, muitos mantos sagrados e enigmas que, hoje em dia, me deixam à beira de uma explosão de lágrimas. Não me vejo mais há muito tempo nesse lugar de paralisia do sono da vida real, mas sigo sentindo os resquícios da injustiça que é criar uma menina pra ser uma mulher conveniente.
Sempre tive sentimentos e emoções grandes demais, desejos intensos demais, opiniões fortes demais. E vivia acostumada a pedir desculpas por isso, tentando guardar na bolsa o máximo que podia, até também ficar pesado demais e eu já não conseguir carregar pra onde precisava ir.
Filhas perfeitas revelam mulheres furiosas, que já nascem com bons motivos pra isso. Mas a gente segue se sentindo culpada o suficiente pra não abrir espaço pra descriar essa criatura que criaram dentro de nós. É incrível como a penitência silenciosa de se sentir errada por não manter a paz (dos outros) persegue pelo resto da vida.
A vontade incontrolável de ser boa, compreensiva e permissiva é ensinada. Não só ensinada, como forçada goela abaixo. Um jeito histórico de seguir fazendo filhas impecáveis que invariavelmente acabam por se tornar mulheres loucas.
E, quando essa chave vira, as mesmas meninas prestigiadas, agora são mulheres difíceis demais pra serem amadas – o velho ciclo de enlouquecer alguém pra depois a chamar de maluca. Mas mal sabiam eles que, hora ou outra, as heroínas das suas próprias histórias descobririam que o amor necessário é só um: o delas mesmas.
Me Deixar Ser Um Monstro
Viver constantemente tentando não escapar os limites da moral e não aceitar o desconforto de me olhar no espelho, mesmo nem sempre tendo certeza do que eu vejo, é uma trilha existencial bastante inflexível. A permanência humana é ambígua, confusa, incoerente, absurda – e não há o que possa se fazer a não ser aceitar.
Em A Hora da Estrela, Clarice Lispector fala exatamente sobre essa dúvida interna entre o monstro e a essência:
‘‘Quem nunca se perguntou: sou um monstro ou isso é o que significa ser humano?”
Me pego pensando se essa pessoa sou eu mesma ou se eu sou apenas a soma de todos os pedaços que eu precisei recortar pra conseguir caber nos lugares por onde eu fui. Acho que ninguém sai ileso de pensar isso, pelo menos uma vez na vida, mas crescer com uma ideia de que o bem e o mal são coisas separadas talvez seja justamente o que nos segura de nos enxergar de verdade – e acolher que essas fronteiras são bem mais borradas e bem menos distantes entre si do que queriam nos ensinar.
Sentir raiva e ainda assim amar, cuidar, resistir. Sentir ódio e ainda assim ser boa. É tudo parte do mesmo pacote, por mais arriscado que isso possa parecer.
Não existem pessoas boas e pessoas ruins, existem seres monstruosamente humanos. E eu queria até poder dizer que admitir o meu caráter cruel talvez me faça mais próxima de mim e da minha bondade, mas quem sou eu pra saber onde termina um e começa o outro?
Histéricas, Loucas E Instáveis
Toda vez que vi a raiva sendo explorada por outra mulher nas telas, as personagens eram histéricas, loucas e instáveis. Todas com sérios problemas psicológicos e de inadequação, como se fossem elas os grandes inconvenientes causando o caos ao redor.
Mabel, de A Woman Under the Influence. Amy, de Gone Girl. Carrie, de Carrie a Estranha. Nina, de Black Swan. E por aí vai.
É chocante o quanto que a opressão condena até mesmo o que a mulher sente. Todo comportamento fora do script doméstico é visto como algo a ser corrigido ou controlado, o inicial silenciamento de quem é vista como ‘‘sensível demais’’ é transformado em rótulo, e até os mais bem intencionados acabam por tentar consertar mulheres.
Foi em 1975, que a teórica Laura Mulvey trouxe a ideia do male gaze no ensaio Visual Pleasure and Narrative Cinema, com um argumento que mudou tudo. E, cinquenta anos depois, a gente segue falando disso: o cinema sendo construído pra satisfazer o prazer visual masculino.
Apesar de existir um movimento crescente de narrativas feitas a partir do olhar feminino, buscando representar mulheres como seres humanos com desejos e opiniões próprias, complexas e não só objetos a serem olhados – como em Portrait de la jeune fille en feu, Fleabag e The Lost Daughter – a mulher como espetáculo visual segue nos perseguindo. A perspectiva dominante segue sendo a do homem e o prazer voyeurístico segue convidando outros homens a assumirem esse mesmo papel quando sentam a bunda na cadeira vermelha da sala escura.
Reforçar estereótipos de gênero, reduzir mulheres a objetos insanos, apagar experiências femininas reais, moldar como a sociedade espera que a gente se comporte e se apresente ao mundo. Uma união das coisas todas que me deixam com vontade de ser histérica, louca e instável – mas, dessa vez, por escolha minha.
Sustentar A Minha Violência
Dos rituais que sustentam minha violência, escrever tá em primeiro lugar disparado. Saber fazer magia com as próprias palavras é das coisas mais misteriosas e extraordinárias que uma mulher pode colocar no currículo.
Meu diário sabe bem das minhas dores, minhas alegrias e meu furor. Me ouve falar sem parar, todos os dias, sobre o que me movimenta e o que me suspende. Me aceita como eu sou. Impetuosa.
É minha versão de dançar como se ninguém estivesse olhando: escrever como se ninguém estivesse lendo. Até porque, ninguém tá mesmo. E é exatamente por isso que eu sou a primeira a gritar pro mundo o quanto ele precisa de mais pessoas com um diário pra chamar de seu.
Meu diário mudou a minha vida – sem querer ser dramática, já sendo. Mudou a forma como eu enxergo o mundo e a mim mesma, como eu me expresso, o quanto eu não guardo mais tudo pra mim, o jeito como eu tomo nota de coisas ordinárias e que, no momento certo, se tornam indispensáveis.
Têm dias em que desatino a escrever páginas e mais páginas de pensamentos aleatórios que abafavam meus dias. Em outros, estico uma folha de papel e só descrevo um pensamento que tive dentro do banho ou deixo um lembrete rápido pro meu eu do futuro: lembrar de brincar mais vezes com a massinha de modelar.
Escrever como forma de me manter viva e de uivar a brutalidade, que vive em qualquer um de nós, foi o primeiro passo pra aprender a converter minha raiva em algo fértil.
A Ira Como Semente
Existe uma energia emancipatória no sentir raiva, quase que uma adrenalina apenas por estar sentindo. E nada mais.
A icônica Bell Hooks diz que a raiva não deve ser reprimida, mas reconhecida e canalizada. Que existe mesmo, ali naquele sentir tão primitivo, um potencial grandioso pra inspirar uma ação consciente e estratégica em prol da transformação – seja ela social ou individual.
No ensaio Killing Rage: Ending Racism, ela fala sobre esse sentimento não precisar ser visto só como um grito vazio, destrutivo e infértil. O ódio tem um composto emocional criativo muito capaz de nutrir uma vontade por mudança.
E tem um detalhe que me chamou a atenção nesse processo todo, e que poucas pessoas têm a paciência necessária pra compreender: toda essa ira precisa estar embasada em amor e justiça, pra poder ser libertadora e não simplesmente devastadora. Precisamos saber ter o cuidado de orientar a raiva por um trajeto que gere uma força ética, ao invés de uma hostilidade ignorante.
Acho admirável o nível de autoconhecimento fundamental pra um ser humano ter a capacidade de alcançar essa ideia de que assumir a própria raiva é só o começo. E que, depois, ainda tem muito caminho a ser percorrido pela frente.
Agregar moral e intensidade ao propósito de transformação é um dos motivos mais bonitos que nós, como comunidade, podemos ter pra sentir uma boa raiva, seja ela do que for. É pegar o que me ensinaram a esconder e fazer alguma coisa que preste com isso: iluminar, curar, tornar possível, lutar por liberdade.
Bônus Track
#1: Uma arte escrita e desenhada por mim, pro Precisa Que Desenhe. E um bom motivo pra tu ir lá seguir esse meu projeto – tem posts novos todos os dias.
#2: Meu último vlog, lá no meu canal do YouTube, pra tu assistir – sai um novo toda Quarta-feira (e um Queria Falar toda Segunda-feira).
Abraço De Despedida
Obrigada por ler até o fim e por estar aqui comigo.
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Nos vemos semana que vem? Espero que sim.




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